quarta-feira, 11 de março de 2015

Um appatakí* sobre Iroko e Ara-Kolé



Nos princípios do mundo, o céu e a terra tiveram uma discussão. A terra argumentava que era mais velha e poderosa que seu irmão, o céu.  “Eu sou a base de tudo, sem mim o céu se desmoronaria, porque não teria nenhum apoio. Tudo seria fumaça. Eu crio todas as coisas vivas, as alimento e as mantenho.  Sou a dona de tudo. Tudo se origina em mim, e tudo volta a mim. Meu poder não conhece limites.” E seguia repetindo: “Sou sólida, sou sólida. O céu é vazio, não tem corpo. Como podem suas posses ser comparadas com as minhas? Que tem ele, mais que suas nuvens, sua fumaça e sua luz? Valho mais que ele. Ele deveria reverenciar-me”. Obá Olórun não respondeu, mas fez um sinal ao céu para que se afastasse, severo e ameaçador. “Aprende tua lição”, disse o céu enquanto se afastava, “teu castigo será tão grande como teu arrogante orgulho.”  Iroko, a sumaúma, preocupada, começou a meditar em meio ao grande silêncio que se seguiu ao afastamento do céu,  porque Iroko tinha suas raízes fincadas nas entranhas da terra, enquanto seus galhos se estendiam no profundo da intimidade do céu. O sensível coração de Iroko estremeceu de medo ao compreender que a grande harmonia que havia existido desapareceria e que as criaturas terrestres sofreriam terríveis desgraças. Até esse momento o céu havia regulado as estações com terno cuidado, de maneira que o calor e o frio tivessem efeitos benévolos nas criaturas que povoavam a terra. Nem as trovoadas, nem as secas haviam castigado a terra. A vida era feliz e a morte vinha sem dor. As enfermidades e as tragédias eram desconhecidas. A morte era pura, pois não existiam as epidemias. O homem desfrutava de uma longa vida, e a velhice não trazia impedimentos físicos, apenas um desejo de imobilidade, e o silêncio se movia vagarosamente através das veias, buscando deliciosamente sua meta: o coração.  Suavemente os olhos se fechavam, vagarosamente chegava uma escuridão; a morte trazia a felicidade infinita. O fim era um belo ocaso. A bondade pertencia a este mundo e uma pessoa moribunda podia sorrir ao pensar no grande banquete que seu corpo formoso e são ofereceria aos incontáveis vermes que o devorariam. A imaginar carinhosamente o muito que se divertiriam os pássaros ao tirar-lhes seus brilhantes olhos convertidos em sementes. Em seu sonhos, os animais, fraternalmente, pastariam de seus cabelos quando estes se misturassem com o capim tenro e nutritivo, e seus filhos e irmãos comeriam os suculentos tubérculos que foram alimentados por seus próprios ossos e por sua carne. Ninguém pensava em causar danos a ninguém. A natureza ainda não havia dado mau exemplo. Não existiam bruxas malvadas nem plantas venenosas. Ninguém tinha de controlar o poder das forças maléficas que surgiram depois da dor e da miséria.  Tudo pertencia a todos e ninguém tinha de governar, conquistar, nem reclamar posses. O coração humano era puro. O céu e a terra estavam unidos, e o céu ainda não havia enviado seu raio destruidor. Nunca as forças celestiais haviam enviado seu raio para destruir bosques, nem um sol impiedoso havia castigado a terra. O mar era uma calma infinita e nenhum vento furioso se originava nele. Ninguém se sentia intimidado pelo mar. O rato era o melhor amigo do gato, e o veneno dos escorpiões era uma gota de mel. Qualquer monstro tinha uma alma boa e cândida, e a hiena e a pomba tinham a mesma alma.
A feiúra veio, mais tarde, quando chegou o tempo dos sofrimentos. Isso fez Iroko chorar, ele, a árvore mais amada por ambos, o céu e a terra.  Invadiu-o um luto profundo pelo que se perdia. Então a sumaúma produziu suas brancas flores e espalhou sua dor sobre toda a terra. Esta tristeza, que viajou com o vento, penetrou no homem, nos animais e em tudo quanto vivia. Uma tristeza nunca antes sentida encheu todas as almas, Quando, ao extinguir-se a tarde, se ouviu o grito profundo e desconcertante da coruja, foi um novo lamento no silêncio de um ocaso diferente. Iroko estendeu seus braços num gesto de proteção. Essa noite foi uma noite diferente. Uma noite desconhecida, na qual a angústia e o medo fizeram sua aparição na terra, penetrando os sonhos, gerando a Iyondó, dando novas formas e garras características e cruéis à escuridão. No dia seguinte, homem, animal e todas as criaturas vivas se perguntavam assombradas, sem poder dar-se ainda uma resposta, por que ainda não existiam palavras para expressar a confusão e ansiedade. As vozes que se ouviam eram absurdas e ameaçadoras e penetravam no ar e na queda das águas. Um dia inesperado nasceu cheio de trabalhos. O sol começou a devorar a vida. A sumaúma dizia a todas as criaturas que buscavam refúgio sob seus ramos: “Vamos rogar por nossa mãe, a terra, que ofendeu ao céu”. Mas ninguém entendia Iroko, porque ninguém conhecia o significado da palavra ofender.  Lentamente, a terra estava secando. O sol obedecia às ordens de não queimar com seu calor e luz excessivos, mas de ir esgotando as águas pouco a pouco. Naquele tempo, as águas eram todas doces e potáveis, inofensivas, claras, mansas, cheias de virtudes e, como suas gigantescas bocas estavam abertas para o sol, subiram para o céu e foram sustentadas no ar. A terra sentia em suas entranhas os efeitos da fúria de seu irmão, o céu. Sofria terrivelmente de sede.  E, finalmente, lhe implorou em voz baixa: “Irmão, minhas entranhas estão secando, manda-me um pouquinho de água”.  E o céu, longe de aliviar a sede atroz de sua irmã, a encheu de um fogo branco e soprou seu corpo ardente com um vento quente, que, açoitando-a selvagemente, tornava ainda mais aguda a dor das queimaduras. As criaturas da terra sofriam junto com ela o terrível tormento do fogo, da sede e da fome. Porém o martírio de seus filhos era, para a terra, mais cruel do que seu próprio sofrimento.  Submissa, pedia perdão ao céu por seus filhos inocentes, pela erva esturricada e pelas árvores moribundas. O sofrimento fazia com que se perdessem as recordações da felicidade passada. A dor exauria as criaturas até que a última memória da felicidade, antes existente, fosse esquecida. Toda felicidade, agora, era remota e inacreditável. Começaram as maldições. A feiúra entrou no mundo.  Foi então que nasceram todas as desgraças. As palavras se converteram em instrumento de maldade. A paz daqueles que morreram foi perturbada; e aqueles que morriam não podiam descansar na bela paz da noite, cuja doçura era duradoura.  “Perdoa-me”, implorava a terra. Mas o céu, inclemente, guardou suas águas. Tudo era pó inerte, quase todos os animais haviam morrido. Homens como esqueletos, sem água nem alimentos para manter-se, continuavam a tarefa de cavar o martirizado corpo da terra em busca de água e de forças para devorar os que jaziam impotentes sobre as rochas nuas.  Toda a vegetação havia desaparecido  e somente uma árvore, em todo aquele mundo árido, com sua gigantesca copa, permaneceu verde e saudável. Era Iroko, que desde tempos imemoriais havia reverenciado o céu. À sumaúma dirigiam-se os mortos em busca de refúgio. Os espíritos de Iroko falavam com o céu constantemente, tratando de salvar a terra e suas criaturas. Iroko era o filho predileto da terra e do céu.  Seus poderosos galhos acolhiam os que buscavam sua sombra e seu refúgio, sendo capaz de resistir ao castigo Olórun.  Iroko dava instruções aos que podiam penetrar no segredo que estava em sua raízes.  Estes conheceram a grandeza da ofensa e então se humilharam e se purificaram aos pés da sumaúma, fazendo súplicas e sacrifícios. Assim, a erva miúda que havia a seu redor, os animais quadrúpedes, os pássaros e os homens que ainda restavam vivos e se tinham tomando clarividentes realizaram o primeiro sacrifício em nome da terra.

Como o céu havia se afastado, escolheu-se a cigarrinha como mensageira para levar a oferenda ao céu. A cigarrinha era o mais leve de todos os pássaros e provavelmente poderia alcançar as grandes alturas do céu. A cigarrinha levantou vôo, mas não pôde chegar a seu destino. Na metade do caminho caiu vítima da fadiga. Então o papa-mosca foi escolhido por sua audácia e constância, mas não teve melhor sorte. Outros pássaros foram enviados, mas suas asas quebravam-se ou seus corações falhavam ao atingir certa altura, e se precipitavam de volta à terra. Então o pássaro Ara-Kolé disse: “Vou levar as súplicas ao céu e estou certo de que só eu poderei chegar à outra margem”. Todos olharam com grande desprezo esse pássaro repulsivo, sombrio e horroroso que falava em tais termos. Nesse momento, o intrépido animal, que era um grande voador, partiu com as oferendas para o céu e logo perdeu-se de vista. Entretanto, o rápido pássaro também caiu e a terra pareceu ter perdido sua última esperança.  Todos começaram a perguntar-se se aquele pássaro bobo e pesado, tão feio, que se alimentava devorando cadáveres, seria capaz de levar a cabo sua missão. Aquele animal pestífero e feio era sua última esperança. Assim Ara-Kolé partiu de novo, levando consigo a última súplica da terra que, sem muita confiança nessa missão, pensava que sua causa estava perdida. Mas Ara-Kolé voou incansavelmente e com serenidade durante dias e noites, até o outro lado do céu.  Passou à margem e voou ainda mais longe, depositando as oferendas, e fazendo com que as palavras da terra fossem ouvidas. Dizia:  “Céu, a terra me enviou para implorar tua clemência. Os filhos e as criaturas da terra te pedem perdão. São teus servos e desde o mais profundo de seus corações imploram misericórdia.  Senhor, a terra está morrendo lá embaixo. Galinhas, galos, pombas, ovelhas, cachorros, gatos, todos nós estamos morrendo. Perdoa-nos, pedimos-te de coração”. Depois que ouviu esta súplica, o céu voltou seus olhos para a terra. Fazia muito tempo que o céu não lançava nenhum olhar para a terra. Então a viu na nudez de sua morte. Vendo que agora o reverenciavam devotamente e com fervor, aceitou as oferendas da terra. “Perdôo a terra”, disse o céu à Ara-Kolé. Nesse momento, as criaturas da terra viram como as nuvens se enchiam desde os quatro cantos do céu, e ouviram o coaxar das rãs líquidas que vinham nas nuvens ou que ressuscitavam do pó morto. Ruidosamente, as águas começaram a precipitar-se desde o abismo em que haviam sido contidas, e desceram em grandes borbotões até chegar à terra. Ara-Kolé voou dia e noite pelo espaço, fugindo do dilúvio que ameaçava afogá-lo. Quase o alcança quando, indomavelmente, as águas se derramaram sobre a terra formando um grande lago. Graças a Iroko, as criaturas se salvaram do dilúvio. A terra bebeu água e saciou a sua sede, gerou, cobriu sua nudez com novo verdor, dando graças ao céu. Entretanto, nunca a terra voltou a conhecer os dias felizes do começo. O céu nunca mais prestou muita atenção, cuidado ou afeto à terra, que agora lhe era indiferente. E todo mundo sabe como tem sido a vida desde aquele dia.

* = é o termo que se usa em Cuba, entre os iorubás, para designar os mitos

Texto retirado de:http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/2009/05/irokoeara-kole.pdf

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Axé irmão! Deixe seu comentário.